Francisco Cuoco foi pilar para fazer das novelas um delírio nacional

Em sintonia com Janete Clair, ator fez sucesso sem igual ao estrelar 'Selva de Pedra'
Redação

No final de 1972, a Globo anunciava com alarde que Francisco Cuoco —que morreu nesta quinta-feira (19), aos 91 anos— estaria em frente ao Theatro Municipal de São Paulo para encontrar-se com sua legião de fãs. Pudera. O ator, em absoluta ascensão em um período em que as telenovelas estavam se transformando em delírio nacional, disparava em popularidade.

Sua presença nas escadarias do teatro fazia parte da gravação do programa "Só o Amor Constrói", que registrava as histórias de grandes personalidades do país e eram contadas por depoimentos de amigos e familiares.

Foto: Reprodução
O ator Francisco Cuoco como o personagem Carlão, da novela 'Pecado Capital', de 1975

E a estreia, em janeiro de 1973, logo após a exibição do Programa Silvio Santos na emissora, em um domingo, era com o intérprete de Cristiano Vilhena, o protagonista —ao lado de Regina Duarte e Dina Sfat— de "Selva de Pedra", a novela de Janete Clair que havia arrebatado o Brasil e iniciado o processo de modernização e industrialização do gênero no Brasil.

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Alcançando 100% de audiência, nada se igualou a "Selva de Pedra" na história da televisão brasileira. E, naquele momento, Cuoco representava o ápice da idolatria do público para com os seus artistas da televisão.

Eis que eu, aos nove anos, quis ir até o centro de São Paulo para conhecer o ator que já havia encantado multidões na pele do dr. Fernando Silveira de Redenção, com seus 596 capítulos produzidos pela TV Excelsior, e que trouxe pela primeira vez a realidade para a ficção. O médico da pequena cidade do interior realiza com êxito um transplante de coração, um pouco antes do pioneiro médico Euryclides de Jesus Zerbini.

Quando ingressou na Globo, no final dos anos 1960, que se preparava para a liderança nacional, Cuoco fez muito sucesso também como o padre Vitor Mariano que vivia o conflito entre o celibato e o amor por Helô —a envolvente personagem de Sfat—, em "Assim na Terra como no Céu", de Dias Gomes.

Em seguida, arrebatou público e crítica com a criação do novo-rico Gilberto Ataíde de "O Cafona", de Bráulio Pedroso, onde se dividia entre o talento e o charme de Marília Pêra, Tônia Carrero e Renata Sorrah. Mas conquistou mesmo os corações de adultos e crianças ao fazer dupla com a secretária Shirley "Sexy", papel de Marília.

Minha mãe, Maria Helena, não deixou que eu fosse ao encontro de Francisco Cuoco no Theatro Municipal, justificando que haveria uma multidão e que aquilo não era coisa para criança.

E eu passei a admirar cada vez mais o ator que vivera no bairro do Brás, que trabalhava como feirante durante o dia para ajudar o pai na barraca de biscoitos e massas, dirigindo o caminhão, e à noite estudava na tradicional Escola de Arte Dramática de Alfredo Mesquista, ainda não pertencente à Universidade de São Paulo.

Desse modo, o grande ator foi um dos principais pilares para a construção da telenovela diária e para o impulso da Globo no país, em particular também por sua total sintonia com o texto de Janete Clair e desta com ele.

Caminhou por diversos estilos, gêneros, formatos. Abriu a série "Caso Especial", em 1971, antologia de grandes textos nacionais e estrangeiros. Um ano depois, participou da produção do primeiro programa gravado e exibido totalmente em cores da televisão brasileira —"Meu Primeiro Baile", de Janete Clair, adaptando o original de Jacques Prévert, com Glória Menezes, Tarcísio Meira e Sérgio Cardoso, entre outros grandes nomes.

Seguiram-se trabalhos sempre de extrema comunhão com as massas sedentas por personagens que a representassem com paixão e determinação. Assim foi com o investigativo jornalista Alexandre Garcia, de "O Semideus"; o aviador Mário Barroso de "Cuca Legal"; o taxista Carlão, em "Pecado Capital"; o intimista médico de bairro Victor Amadeu, de "Duas Vidas"; até o extraordinário cartomante Herculano Quintanilha, de "O Astro", com uma aura especial.

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Tônia Carrero e Francisco Cuoco em cena da novela 'Sangue do meu Sangue", em 1969, na TV Excelcior

Até hoje é impossível eu passar pelo Largo da Carioca, no Centro do Rio, e não lembrar da morte de Carlão, em meio à construção do metrô, uma das mais pungentes cenas de nossa teledramaturgia. "Pecado Capital", a novela escrita às pressas por Janete Clair para tapar o buraco da proibida "Roque Santeiro" —papel que seria de Cuoco—, em 1975.

O sucesso do "ator das multidões" era tanto que não raro encontrávamos Cuoco declamando poesias em vinil no formato de compacto e protagonizando fotonovelas, como a famosa série de casos médicos com o dr. Drumond e sua enfermeira, Mônica, papel de Nívea Maria.

No realismo fantástico criado por Dias Gomes em "Saramandaia", encarnou a figura de Tiradentes e personificou mais um médico em "Obrigado, Doutor", iniciando a produção de seriados nacionais, em 1981.

Na primeira novela solo de Aguinaldo Silva, "O Outro", deu vida ao empresário Paulo Della Santa e ao simplório Denizard de Mattos, dono de um ferro-velho.

Em 1989, o personagem Severo Toledo Blanco e a esposa Gilda, vivida por Susana Vieira, convenceram o matuto Sassá Mutema, de Lima Duarte, de que ele poderia ser "O Salvador da Pátria", em mais uma polêmica novela de Lauro César Muniz.

Foto: Daniela Toviansky/Divulgação
O ator Francisco Cuoco com o pesquisador Mauro Alencar em São Paulo

Por essa época, eu já tinha o privilégio de grande amizade com sua irmã, Grácia, que havia conhecido como diretora da Cultura Inglesa no bairro da Mooca em 1980, época dos meus 18 anos. E já havia aplaudido o ator em sua leitura dramática de trechos da obra de Shakespeare no Teatro da Cultura Inglesa.

A amizade me levou a conhecer pessoalmente Cuoco, que à época morava no Rio. Em um desses eventos, tive a companhia dele, dirigindo o carro. Naquele momento, realidade e ficção se embaralharam, pois era o personagem Carlão ao meu lado e mais todos os outros que povoavam o meu imaginário.

Foto: Daniela Toviansky/Divulgação
O ator Francisco Cuoco e sua irmã, Gracia, com o pesquisador Mauro Alencar, ao centro, em 2024

Foi quando o menino de nove anos concluiu o seu objetivo e confirmou que a vida por si só não basta. Que todos nós precisamos de uma dose diária de ficção, coisa que Francisco Cuoco nos brindou com vocação, talento e paixão, garantindo seu lugar no Olimpo.

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