'Revolução esquecida' resultou em massacre há 101 anos em SP
Uma série de motivos explica por que revolta de 1924 ficou menos conhecida que Revolução de 1932O livro "1924 - Tenentes Rebeldes, Bombardeio de São Paulo, Retirada e Exílio" resulta da mania que jornalistas têm de escarafunchar sua memória em busca de histórias adormecidas. Em um mergulho desses, despertei para o fato de que estava na hora de colocar a chamada "revolução esquecida" de volta ao centro do palco.
O motim tenentista sempre permeava conversas de minha família. Tive dois tios ligados à cúpula do levante na capital: o tenente João Batista Nitrini e seu cunhado, capitão Índio do Brasil, integrantes da Força Pública (atual PM), que participaram da tomada dos seus próprios quartéis instalados no bairro da Luz, na madrugada de 5 de julho de 1924.

A escolha desta data para pôr a revolta nas ruas não foi mero acaso. A rebelião em São Paulo foi o repique planejado da revolta ocorrida no Rio de Janeiro, então capital federal, num mesmo 5 de julho, em 1922, quando tenentes do Exército e da Marinha tentaram derrubar o governo do presidente Artur Bernardes, episódio conhecido como Levante do Forte de Copacabana, que resultou na morte de 18 oficiais e um civil na orla carioca.
Os sobreviventes de Copacabana foram expulsos das forças militares e condenados a longas penas. Mas o capitão Joaquim Távora e seu irmão, tenente Juarez, ao lado do tenente Eduardo Gomes, fugiram e voltaram a conspirar, agora baseados em São Paulo, estado escolhido por possuir a maior economia industrial e agrária do país, cuja Força Pública tinha mais homens e poder de fogo do que o próprio Exército regional.
Os tenentes tinham como objetivos a extinção da política "café com leite", que mantinha alternância do poder entre paulistas (café) e mineiros (leite); reformas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para eliminar a corrupção; estabelecer o voto secreto; instituir o ensino público; e neutralizar a influência da Igreja no Estado.
Para realizar esse amplo programa, os tenentes previam impor uma "ditadura temporária" com governos formados por dois militares e um civil, em todas as instâncias (Presidência da República, governos estaduais e municipais), que permaneceriam no poder até que o grosso da população maior de 18 anos tivesse sido alfabetizada.
Quando a rebelião explodiu, São Paulo tinha cerca de 700 mil habitantes, metade deles imigrantes europeus operários. A população foi despertada de madrugada pelos estrondos dos canhões sem ter a menor ideia do que estava por vir. Atônita, grande parcela fugiu para cidades próximas.
Os militares legalistas, surpreendidos, conseguiram se rearticular nos dias seguintes: 12 mil homens foram deslocados para São Paulo. Faltou comida. Famílias famintas invadiam armazéns, saqueadores foram fuzilados. O governador Carlos de Campos fugiu para a região da Penha, sob proteção do Exército, após os rebeldes bombardearem o Palácio dos Campos Elísios, sua residência oficial.
Os combates se espalhavam pelas linhas de frente a partir da zona leste, onde o Estado Maior legalista concentrou poderosa artilharia. Os rebeldes ficaram cercados na região central sob o chamado "bombardeio alemão", tática difundida na Primeira Guerra (1914-1918), com as tropas de Artur Bernardes disparando principalmente contra fábricas e bairros operários (Brás, Mooca, Ipiranga etc.). Em apenas três semanas de combates, foram mortos mais de mil civis, destruídas milhares de casas e dezenas de grandes indústrias.
No 23º dia, os tenentes organizaram a retirada justificando que não queriam prolongar o massacre. Três mil soldados deixaram a capital partindo da Estação da Luz em direção à cidade de Bauru, formando a Coluna Miguel Costa, com o objetivo de se reunir às tropas rebeldes que viriam de outras regiões.
Porém, a união com forças rebeldes sulistas comandadas pelo capitão Luís Carlos Prestes não conseguiu expandir a luta armada. A partir daí, o Estado Maior revolucionário adota a estratégia de guerra de movimento, que resultou na mítica Coluna Miguel Costa-Prestes, em 1925, que percorreu 25 mil quilômetros no Brasil em dois anos, pregando a insurreição geral até que, desgastada e sem apoio popular, depôs as armas em território boliviano.
Sempre perguntam: por que a Revolução de 1932 é muito mais conhecida do que a de 1924, se o movimento dos tenentes resultou num massacre de mais de mil civis na capital em apenas 23 dias, enquanto a revolução de 1932, que durou quase três meses, resultou em cerca de 1.200 mortos civis e militares? É óbvio que não se comparam revoluções pelo número de mortes. Mas é possível delinear alguns motivos que levaram a de 1932 ser mais "famosa".
A de 1924, embora aguerrida, foi mais uma entre várias revoltas militares que contestaram a República Velha. Seus objetivos eram nitidamente reformistas, mas sem um projeto claro de poder. Os tenentes não articularam uma liderança única, e o movimento dispersou-se após a retirada das tropas derrotadas em São Paulo.
A revolta de 24 foi uma reação exclusivamente militar circunscrita a São Paulo, sem raízes na sociedade civil. O Brasil ainda era um país rural com sistema de comunicação precário, restrito a jornais de pequena circulação local. A conspiração tenentista foi feita em contatos pessoais de quartel em quartel, longas viagens, distribuição de panfletos e telegramas cifrados. Não envolvia cidadãos civis.
Já a Revolução Constitucionalista conquistou amplo apoio social. Ameaçada de perder poder político diante da ascensão de Vargas em 1930, a elite cafeeira e industrial envolveu a classe média, estudantes, mulheres e imigrantes com discursos de exaltação dos paulistas em defesa da democracia.
A campanha "Ouro para o Bem de São Paulo" mobilizou recursos para o custeio da guerra. Ricos e pobres doavam suas joias. Milhares de donas de casa aderiram ao trabalho voluntário de enfermagem, confecção de uniformes, coleta e preparação de alimentos para as tropas.
Os jornais paulistas, na época com tiragens exponencialmente maiores do que em 1924, se transformaram em veículos de propaganda da revolta. As emissoras de rádio haviam se popularizado e convocaram seus milhares de ouvintes para participar do movimento.
E a morte de quatro cidadãos em uma manifestação na praça da República, no dia 23 de maio, atingidos por tiros disparados pelos aliados de Vargas, comoveu a população, acendeu o estopim da revolta em 9 de julho.
Calcula-se que, entre os cerca de 35 mil combatentes das forças paulistas, 60% das tropas eram de voluntários civis, e os demais, militares da Força Pública.
Sem apoio de outros estados, inferiorizados militarmente, os paulistas foram derrotados após três meses de combates. Dois anos depois alcançaram uma marcante "vitória política" ao terem a reivindicação de uma nova Constituição atendida por Getúlio Vargas, o que deu sólida base à continuidade do culto à causa paulista.
Fonte: Dácio Nitrini Jornalista, atuou na TV Globo, SBT, TV Gazeta, TV Cultura, TV Record, Folha e O Estado