Quando todos viram o problema, mas ninguém viu o menino
Morte em zoológico expõe falhas sucessivas do poder público e da sociedade — que depois finge surpresaA morte de Gerson de Melo Machado, jovem com histórico de transtornos mentais, no zoológico de João Pessoa, tornou-se mais um episódio em que a omissão aparece em cena — tarde demais, como sempre. A conselheira tutelar Verônica Oliveira relatou que o jovem sonhava em ir para a África cuidar de leões, e que seu histórico revelava comportamentos de risco ignorados por quem deveria garantir proteção efetiva.
Gerson, acompanhado pelo Conselho Tutelar desde os 10 anos, já havia tentado entrar no trem de pouso de um avião e, neste ano, atirado um paralelepípedo contra uma viatura da Polícia Militar. Nada disso foi suficiente para que o Estado garantisse o acompanhamento psiquiátrico solicitado pelo conselho — um detalhe burocrático que, como tantos outros, ficou sem resposta.
No relato da conselheira, ecoa o abandono que marcou a vida do jovem: único entre cinco irmãos a não ser adotado, filho de mãe com esquizofrenia e avó também com transtornos mentais. Um quadro que a sociedade costuma enxergar com a mesma profundidade com que lê manchetes rápidas: superficialmente e tarde demais.
No domingo, Gerson escalou uma parede de mais de seis metros, pulou grades e entrou no espaço da leoa — um percurso que exigiu determinação, mas também evidenciou que barreiras físicas não corrigem falhas humanas. O jovem morreu em decorrência das mordidas, enquanto o animal, assustado, sequer tentou se alimentar dele.
O zoológico afirmou que o incidente foi “absolutamente imprevisível”, como se previsibilidade e negligência nunca ocupassem a mesma frase. O parque foi fechado para investigação, a leoa será avaliada e não deve ser sacrificada — ao menos uma inocente envolvida terá seu direito preservado.
O primeiro contato entre Gerson e o Conselho Tutelar ocorreu quando ele caminhava sozinho por uma rodovia. Quase uma metáfora perfeita: desde a infância, ele seguia sem direção, e mesmo quando alguém o via, ninguém parecia conseguir — ou querer — tirá-lo do asfalto.
Entre pedidos ignorados, cuidados insuficientes e a crença social de que “não é problema meu”, Gerson morreu como viveu: cercado de riscos, mas sem redes. O tipo de tragédia que todos lamentam depois, mas ninguém impede antes.
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